domingo, 15 de agosto de 2010

1a perda

Mocimboa da Praia, 15 de agosto de 2010.       
 
 
Assanito morreu.
Morreu no dia 14 de agosto às 22 horas. Morreu dois dias antes de completar 3 anos.
Assani, como todos os chamam, foi a criança que mais me apeguei em Mocimboa.
Quando o conheci ele não andava e não falava. Foi este ano, depois de um tratamento de tuberculose que Assni começou a caminhar com segurança e a falar... e ouvi o primeiro “Ana!!” da sua boca em fevereiro de 2010...
Assanito está no céu. Está presenciando uma paz, alegria e contentamento que nunca teve aqui na terra.
Ele morreu com uma pulseira de pano feito por um curandeiro, pois enquanto eu estava no Brasil, sua mãe, Ágata procurou o curandeiro mais uma vez para tentar curar seu filho... que tinha AIDS, tuberculose, asma e sabe mais Deus o que...
A última vez q toquei em Assanito foi na sexta-feira de manhã. Ele estava dormindo de barriga pra cima, respirando com dificuldade, com catarro escorrendo de sua boca e do seu nariz... Quando sentei na cama de corda em que ele estava dormindo no quintal, encontrei sua carinha com muitos mosquitos, e quando fui limpar seu nariz ele chorou e voltou a dormir, respirando com dificuldade e fazia um barulho horrível.
A vó de Assani, Verônica, foi consolada quando estava correndo quase sem roupa pela rua de terra sem energia nenhuma, num desespero que marca uma cultura que não tem a esperança de um dia viver eternamente com Jesus no céu. Ela veio em minha porta gritando: “Ana, Ana, Ana, Assani morreu Ana!!! Assani morreu!!” Sai de pijama, enrolada numa capulana e chorei amargamente abraçada com minhas amigas....
Ágata mal pode chorar a morte de seu filho. Na cultura mwani vc não pode chorar “muito” pois isto atrapalha a ida da pessoa morta até o seu destino final.Se  houver muito choro, será um caminho cheio de dificuldades e pesares. É pecado chorar pela morte de alguém.
Sentei durante a madrugada num quarto cheio de mulheres, com Ágata deitada no meu colo, desconsolada, perdida e quando não podia segurar, gritava: “Assani, Assani meu filho, Assani minha família, meu filho, meu filho...” E já vinha alguma mulher dizendo que não era pra ela chorar, q ela sabia o que estava trazendo para o seu filho. Mas ao redor, vc podia ver as lágrimas rolando do rosto de cada uma, num silêncio mortal, numa falta de esperança sem fim...
Assanito ficou no quarto ao lado a noite toda sozinho coberto com uma capulana, deitado numa cama de corda. Embaixo desta cama foi feito um buraco no chão, para quando o corpo fosse lavado, a água escorresse nesse buraco e ele fosse tampado depois. Como Assani era um menino, foram homens a lavar seu corpo com sabonete, enrolar num pano branco para ser enterrado.
Foi enterrado as 9:30 da manhã de hoje no cemitério muçulmano de Mocimboa. Só os homens podem acompanhar o enterro. As mulheres não tem esse direito. Ficamos todas sentadas no quintal só observando...
Depois q Assanito morreu, Ágata não pode ficar mais com ele, não pode mais olhar pra ele e nem ficar no mesmo quarto que ele... nem se quer pode derramar todas as lágrimas que estão inundando a sua vida nesse momento...
Amanhã teremos uma cerimônia chamada “Matanga”, que acontece de um a três dias depois da morte de alguém. A família oferece comida aos convidados e depois desta cerimônia está confirmado que a pessoa morta não voltará mais.
Eu estou aqui... chorando minha primeira perda em Mocimboa... chorando a perda de Assanito... chorando por Ágata, Verônica e todo o povo mwani inserido nessa escuridão de alma, medo do futuro, falta de esperança..
Estou pensando qual será minha próxima perda... preparando meu coração para me conformar com a AIDS, com a falta de recursos, com a falta de dinheiro, mas não me conformando com a falta de Jesus na vida de meus amigos e amigas... continuarei aqui, clamando por sabedoria e oportunidades para falar do amor de um Deus que traz conforto, paz de espírito, salvação da nossa vida, promessa de uma eternidade toda a seu lado...
 
Adeus Assani, titia Ana amou ter conhecido você... fiz tudo o que podia pra te ajudar, fiz tudo o que estava ao meu alcance, e mesmo chorando estou feliz que hoje vc não está mais sofrendo, mas está brincando no céu, respirando perfeitamente, com seu rostinho limpo e um corpo sem imperfeições... estou feliz q vc conheceu Jesus e espero um dia te encontrar de novo... Bjos... Titia Ana 

 Essa foi a última foto que tirei de Assani, dia 24.04.2010

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Mocimboa da Praia, 1 de agosto de 2010.

Hoje, dia 1 de agosto de 2010, completo um ano em Mocimboa da Praia!!!
Quando volto os meus olhos para esse um ano q se passou, encontro uma outra Ana Elisa a olhar essas terras pela primeira vez, a titubear se daria conta ou não...
O que mais ouvi dos meus conterrâneos brasileiros, foi quão surpreso eles estavam por eu ter agüentado esse um ano... pois ninguém esperava q um dia eu fosse capaz de deixar minha família pra trás...
Sozinha e pelas minhas próprias forças isso não seria possível mesmo... mas nesse um ano descobri que eu não sou nada... e que Ele é tudo em mim...
Neste um ano descobri também que:
  • Saudade não mata;
  • O ser humano é totalmente adaptável;
  • No convívio com outra cultura, a sua é apreendida de forma mais profunda e real... hoje respeito mais a minha gente e tenho um orgulho profundo em ser brasileira;
  • Conviver com outra língua nos faz mais humildes na medida em que nos percebemos usando um vocabulário precário e infantil para nos comunicar...
  • Que o silêncio é melhor do que o muito falar...
  • Sou mais forte do que eu pensava ser;
  • Sou engraçada... e quão inusitado foi perceber isso... hahahaha...
  • Posso falar em público sem me desesperar;
  • Preciso aprender a receber presentes e elogios, sem me sentir constrangida e na obrigação de retribuir algo imediatamente...
  • Amo falar português... nossa... como eu amo!!! rss...
  • As músicas que nos vem à mente do nada são as antigas, aquelas da infância... e viva Vencedores por Cristo, Grupo Elo, Harpa Cristã e por aí vai....
  • Tenho a mania da minha vó Ester de guardar saquinhos de supermercado no guarda-roupa;
  • Não suporto ficar com os pés molhados no chinelo depois do banho;
  • Posso ficar sem fazer minhas mãos, mas é impossível ficar sem fazer meu pé...
  • Cabelo cresce mais rápido do que se imagina;
  • Música e leitura são vitais para sanidade mental...

  • Amo, amo, amo padarias e como é difícil viver sem elas...
  • Tudo o que é embasado no amor e no respeito não se perdem com a distância, mas se solidificam com a saudade...
  • E ainda... que a paz em Jesus é real...
Aprendi, reaprendi e vou continuar aprendendo que “dele, por Ele e para Ele são todas as coisas...“ (Romanos 11:36)

Te sirvo porque te amo meu Senhor... obrigada por esse um ano de fidelidade, amor e carinho...
E obrigada a todos por estarem comigo nessa curta caminhada...
Viva um ano em Mocimboa da Praia!!!

Bjos
Ana